28/09/2008

Mas mãe!

Fez hoje treze anos. Olhei para ele e tinha finalmente a desenharem-se feições de rapazinho. Comparado com esta fotografia, enfrentava, enfim, as dores de estar a afirmar-se como criatura, uma ligeira nostalgia silenciosa no olhar. Ainda ontem era aquele ser de ar suplicante, os olhos duas bagas ansiosas a concitarem carinhos e simpatias. Por causa dessa aparência grudou-se-lhe, irremovível, como um cognome, ou um petit nome o mas mãe! Magnífica criatura, o meu Afonso.

18/09/2008

O homem que mandava passar os comboios

A minha rua, na cidade de Malanje onde nasci, chamava-se Vasco da Gama. Ao topo ficava o mercado, ao cabo, a linha do caminho-de-ferro. Era por ali que deambulava quase sempre sem companhia, outras vezes com o Gégé, filho do Lucas funileiro e com a Maria Luísa, hoje professora de matemática, filha do Augusto Simão, que me queria oferecer uma bicicleta e onde comprávamos sacas de milho para as galinhas que nos enchiam a capoeira.
Da «Quitanda», assim se chamava o mercado, lembro-me apenas do sino que tocava o meio-dia.
Já a linha do caminho-de-ferro é uma memória vincada que me fica. Passava ao fundo da minha rua, interrompia a minha rua, era o limite além da qual poucos brancos já viviam.
Se eu tivesse tido tempo, as questões ferroviárias, com todo o seu caudal de organização militarizada, de regulamentos e apitos, vigílias nocturnas e altas velocidades, ter-me-iam ocupado o espírito de qualquer forma. Como não sei, todo aquele concerto de homens e metais, de movimento e de espera, teria de ter encontrado em mim um modo qualquer de se expressar. Ficou como memória, como sentimento de nostalgia pelo que poderia ter sido.
Lembro-me das locomotivas a vapor, ronceiras e fumarentas no treca-treca de arrastarem atrás de si a centopeia de intermináveis composições; mas lembro-me, como poderia esquecer-me, a alegria das primeiras máquinas a diesel, brutais em altura e em majestade, as «Garrats» possantes, o rugir cavo dos seus motores, o silvo atroador do seu apito. Como me pareciam gigantes, imensas, montanhas metálicas roncando as entranhas da terra.
De Malange a Luanda eram quatrocentos quilómetros que levavam doze horas numa via reduzida impregnada de pó barroso. Parava-se na Canhoca para almoçar, sopa de feijão a escaldar.
A passagem dos comboios ao fundo da minha rua pressentia-os já, não pelo horário, que julgo nunca terei chegado a saber, mas sim pelo progressivo aproximar-se do «pouca terra» entrecortado com «úaaaa úaaa» com que a máquina anunciava a sua chegada.
Lembro-me do guarda da linha.
Lembro-me da sua fardeta manhosa e esburacada, dólmen de autoridade ferroviária, a bandeira vermelha na mão.
De carapinha branca, o rito digno dos velhos negros, o guarda da linha ocupava o seu imenso tempo livre a fabricar sapatos que recortava de velhos pneus. Antes de eu ter sabido o que eram sapatilhas de ténis, aqueles foram as primeiras que vi fazer pelo homem que mandava passar os comboios.